Foi neste açude da ribeira, também conhecido por Poço do Barquinho, que aprendi a nadar.
Criança ainda, seis ou sete anos, juntamente com outros amigos da mesma idade (o Jorge americano, o Manuel Augusto, o Carlos Canhoto... dos que me lembro), metemo-nos a caminho ainda cedo - naquele tempo qualquer garoto tinha essa liberdade de movimentos, preparados para os cerca de seis quilómetros que separam o Bairro da Senhora da Conceição, no Fundão, até este local no Souto da Casa.
Como a licença da Mãe para estas aventuras era obrigatória, adoptei a estratégia da promessa de assistir à missa matinal, celebrada pelo padre José Rebordão, que acontecia cerca das sete horas da manhã no Preventório - uma casa albergue para meninas que vinham estudar para o Fundão.
O padre vivia com a mais nova das cinco filhas, a menina Aldinha, no primeiro andar da casa onde o meu tio António Adelino - António do Vale D'urso como era mais conhecido, tinha a taberna.
Logo, esta proximidade entre vizinhos inviabilizava safar-me daquela maçada.
Depois do santo ofício, lá metemos pernas ao caminho para uma manhã de aventura que começava logo no início com um assalto à figueira do Elói. Enorme, as ramadas trepavam por cima do telhado da imensa casa de granito, à procura do Sol, e as suas abas pendiam sobre o muro branco que ainda ladeia a estrada. Lampos, luzidios e mesmo à mão de semear, eram um aconchego de barriga naquele tempo de vacas magras.
De repente apareceu o velho Gadanho, aquele gigante, que sabíamos ser de poucas conversas pela doença da loucura que o acometia na altura de pagar a renda, enorme de altura e pela robustez do corpo, cara redonda e larga pela barba curta mas abundante, atrás do carro de mão de roda também de madeira, cheio de hortaliças frescas que iria vender na praça. Todo o conjunto pesava e assustava, mais não fosse pelo barulho na descida empedrada da Vila Alberta, nome da casa e das terras que ele tratava. Foge...!
Atalhávamos pelo caminho que começava no portão da Quinta do Convento, sempre junto ao muro. Se ganhávamos tempo de caminho nestes atalhos também era garantido que o gastávamos, de imediato, em brincadeiras.
Este percurso era polvilhado de seixos brancos que quando esfregados um no outro produziam faíscas de luz. Ainda me lembro do cheiro a queimado que ficava no ar depois da fascinante experimentação.
Chegados ao "monumento", como habitualmente era chamado à edificação em louvor da Senhora do Rosário de Fátima, era garantido que treparíamos pelo cabo do pára-raios, localizado na parte de trás da construção, e alcançávamos a placa superior que também serve de telhado à pequena capela.
Deste ponto alto a vista sobre o Fundão e a Cova da Beira é soberba, acrescendo que a luz matinal, com o Sol ainda meio entretido com a Gardunha, amarela os brancos do casario e doura as folhas do lado nascente dos castanheiros jovens, ainda arbustos, destacando o verde das opostas.
Na altura era possível distinguir alguns fumos que ainda emanavam de telhados, criando a falsa ilusão de neblina. Ao longe, no grande vale, o afluente ribeira da Meimoa e o rio Zêzere que se encontram aqui perto, em terras de Alcaria.
Retomado o caminho surgia-nos, mais à frente, o cruzeiro do Convento de St.° António, - ou do Seixo. Sentávamo-nos nele por ser um ponto estratégico. Cochichando enquanto trespassávamos com o olhar o pequeno portão de ferro, de acesso à Quinta do Convento, amanhada pelo "velho" Torrinhas, que tinha fama entre a garotada.
Mas, do outro lado do pequeno portão de ferro, havia uma pereira e o portão estava aberto!
Tinha de ser, mesmo sem fome...
Traquinice aprontada e era já o alto muro de granito, escurecido pelos musgos e pelos anos, que nos detinha um pouco mais. Uma pia de granito, a meio da parede, prometera, em tempos, água aos caminhantes. Seca servia agora de poleiro e degrau para se mirar por cima do muro, para dentro daquele sítio proibido cheio de carvalhos enormes e de segredos. Mesmo por de trás da pia um tanque, também ele de largas lajes de granito, cheinho a transbordar de água que vinha de uma nascente acima da Capela da Senhora do Miradouro.
Que sede! mas, ali e no momento, nada a fazer senão seguir viagem.
Haveria, no caminho, outros poços...
Com um ramo de carvalho com algumas bugalhas, na mão, sorrateiramente, entrávamos pelo portão da Fábrica da Resina e, com um pouco de sorte, o enorme tanque onde a armazenavam, mantendo-a quente e líquida, permitia-nos, à socapa, introduzir nela o galho e ala, que se faz tarde.
Quando o coração abrandava a correria já estávamos de novo na estrada e o ramo, vidrado e cristalino, se com sorte não tivesse partido pelo desenfreio era sempre uma bonita oferta para a mãe perdoar algum atraso.
Ficaria guardado junto à mina da Quinta das Tílias, assim chamada porque dela corria água, em levada junto à estrada, depois encanada até à quinta, para lá do cemitério da Aldeia de Joanes, dois ou três quilómetros mais abaixo.
Adiante...
Duas o três marcas, em jeito de assinatura, riscadas na casca das faias que ladeiam a estrada, para marcar território, uma investida a uma cerejeira, das poucas que havia na altura, e já estávamos no imenso e jovem pomar de maçãs que um de Alcongosta ali plantou.
Para a fruta ainda era cedo mas um enorme e profundo tanque, ali construído, merecia uma inspecção. Comprido e largo e com mais de dois metros de altura. A água era pouca, talvez meio metro dela e, de tão lamacenta, só se podia adivinhar o fundo.
Mas uma escada de ferro transfigurava-o em piscina.
E estava calor.
Entrou um, e outro, enquanto eu agonizava na borda pelo disparate de não saber nadar.
Vingar-me-ia!
Já no Souto da Casa, mitigada a sede no chafariz cimeiro, junto da Capela de S. Gonçalo, arrepiávamos caminho por entre quintais.
A orientação dependia do declive, porque a ribeira estava lá em baixo.
Faltava pouco e, por isso, acelerámos o passo que passou a correria.
Tínhamos chegado ao céu.
Á vista da água transparente e pura, foi um instante enquanto os calções e camisas voaram para cima do areão grosso que sustenta o açude.
E foi espadanar até mais não.
Deitado, de costas voltadas ao sol, agarrei-me a uma pedra da margem, esticado e com os pés orientados para a parte mais funda, ensaiei os movimentos que o Raposo me tinha ensinado na piscina municipal.
Foi instantâneo.
Quando senti o corpo impelido pela força das pernas, de tanto entusiasmo convenci-me em absoluto que já não havia segredos, tinha domado a besta.
Por outro lado, a confiança advinha de este ser um local já conhecido pelo facto de a minha família muitas vezes se reunir aqui, aos Domingos preferencialmente, para passar o dia e gozar o frescor da água e da sombra dos salgueiros.
Muito gostava o meu tio António destes encontros, que ele próprio entusiasmava e financiava.
O cheiro das ervas molhadas empresta à nossa ribeira um cheiro característico com fragrâncias que hoje passei a identificar, sobressaindo a menta do poejo, a erva doce...
Por entre as pedras escurecidas pelas algas esgueiravam-se pequenos bordalos e coloridas trutas, da cor do arco-íris, que lhes deu o nome.
Outros, mais pequenos, como eu ainda indiferentes ao conhecimento das coisas da vida, vinham mordiscar-me os pés, talvez por curiosidade dos pés brancos ou para sugar algum nutriente que eles levantavam do lodo.
Um festival de movimento e cor, reflexos finos e rápidos carregados da cor do espectro, atraíam cardumes de peixes minúsculos àquele perigo ignorado, travestido de plumas apetitosas cheias de cor vistosas: o Jorge tinha levado meia dúzia de amostras - ou medalhas, artefactos isco com três anzóis (fateixas), próprios para apanhar peixes de outras latitudes e dimensões.
Gozei aquele bailado indiferente à ineficácia do propósito.
Ao que não fiquei indiferente foi ao adiantado da hora.
Aquelas picadas nas costas, de cada vez que o frescor da sombra dos salgueiros era maior, alertara-me que tinha apanhado sol a mais, sem camisa.
E seria quase hora de almoço, e tínhamos o caminho de volta, e mais não sei quantas doideiras a entreter.
E a fome a apertar, as costas a doer e tinha o Luís Maia, o Fernando Leitão e os garotos da Rua de Cima, o João Manaia, o Chico Campanha, o Zé..., preparados para a bola no largo das oliveiras da senhora da Conceição.
Não havia tempo a perder.
Mas duas desafortunadas criaturas, metidas dentro de um “garrafo” de vidro, ainda nos obrigariam a dar uma volta pelo Castelejo, onde existia um fontanário cuja bica caía numa minúscula bacia de pedra.
De tão pequena que tivemos a impressão que os peixes eram grandes de mais em tamanho, mas também eram poucos para levar para casa.
Foi o primeiro julgamento, popular e sumário, em que participei.
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