Humos de Morille / Fumos da cidade
Elementos afirmadores das vivências e das permanências das sociedades, as chaminés constituem parte integrante da percepção do horizonte construído de qualquer comunidade. Como afirmou Vito Lupo, este tipo de elementos “como herança do passado, forma um capítulo importante das história das alturas, cuja dimensão construtiva está escurecida pelos modelos arquitectónicos mais nobres”.
CHAMINÉS - CERTEZAS DA EXISTÊNCIA
Fotografia ilustrada de Belarmino Lopes
As chaminés e toda a sua amplitude metafórica constituem o elemento comum deste conjunto de apreensões - impressões modificadas do fotógrafo Belarmino Lopes, incutindo nas composições um ritmo intrínseco e uma intensa presença ao mesmo tempo repetitiva e única.
As superfícies são autênticas releituras cuja origem primeva se funde no fugaz momento de um itinerário do olhar vincado pela descoberta e posterior captação imagética, aqui conciliados e restaelecidos em novas cromias, planos e horizontes.
Noutro sentido, as captações de Belarmino Lopes assumem-se como um inventário de presenças e de sinalizações da vida e dos ritmos dos quotidianos da comunidade apreendidos através das chaminés.
Na contínua mutabilidade da paisagem do local, Morille terra de futuros interrogados e de ares lavados, a chaminé, matéria de permanência, levanta um constante e distintivo perfil estratigráfico tecido por cheiros, por sons e sobretudo por fumos, criando atmosferas e gradientes luminosos únicos.
Estabelecendo nós e laços ímpares entre o fogo, a casa e o viver, a chaminé remete-nos, quase sempre, para uma dimensão olfactiva e para uma geografia da memória individual fundada na casa. Para o centro do primordial viver, para o ponto focal de onde, afinal, partiram todas as concentricidades espaciais posteriores,para o espaço genético de todos os esteios da convivência humana, para a domus aquele elemento activo da consciência do ser, um “espaço feliz”, como declarava Gaston Bachelard, espaço de segredos, de estremecimentos e de memórias que conduzem à imagem do “cronotopo idílico” doméstico de Mijail Bajtin. O fogo foi e é o centro desse viver, gerador de uma ordem social primordial, ainda que na voragem dos dias nossos, como escreve o arquitecto Parra Bañón, «O fogo já está proibido, e o fumo, por excessivo, condenado», as chaminés já não são o canal que anuncia a presença «Já não servem para anunciar que a casa está habitada, para, se está aceso, mostrar que há alguém lá dentro. O fogo já não é uma linguagem, apenas uma fonte de energia arqueológica».
São estes alguns dos sentidos que emanam das composições pictórico-fotográficas de Belarmino Lopes, ingénuos ensaios que buscam captar harmonias à beira de linhas de friezas quentes, recusando estridências e a indicação de ordem em aparentes silêncios.
As obras reforçam e revelam a estrutura geométrica do visível e das suas regras que interiormente suportam a compreensão ordenada dos espaços organizados e ordenados, reforçados pela clareza das técnicas de impressão, colorindo inesperadas perspectivas. Descobrem-se diferenças entre leituras semelhantes.
São posições conjuntamente construídas, perceptíveis não em sucessão ou alternativa mas num tempo harmónico perceptível num olhar, ou convidando à disponibilidade do percurso infindo por linhas, pontos de fuga, planos coloridos horizontes azuis, ocres, campos e relevos de palha rasa, telhados e superfícies de ladrilhos alvos e rubros. Elementos unidos em veredas geométricas e de complexas linhas em jogos de claro-escuro num ritmo construtivo de memorizações visuais.
Estas textualidades de luz não procurarão a melancolia embora não seja estranha a presença de alguma solidão nas sombras e volumes insinuados em intensas luminosidades do lugar.
Belarmino Lopes descobre num elemento arquitectónico que tem por destino o repetir-se, aquilo que o isola e individualiza: a sua a limpidez e seu porte, perscrutando a vida.
A chaminé mensageira entre a terra e o céu, entre os homens e os deuses, emite presença humana, aquece a alma. Substantivo feminino, ela é hoje uma referência simbólica e uma memória arquétipa cuja sombra nos precipita nos versos do esquecido poeta “louco” António Grancho que noutras raias e interioridades fazia ecoar nos campos cálidos a sombra nocturna da chaminé:
“Noite luarenta / Noite a luarar /Noite tão sangrenta /Noite a dar a dar/Na chaminé da planície/a solidão a cismar /na chaminé da planície/noite luarenta a dar a dar/Noite luarenta /noite de mistério /… / O cavalo a luarar /a lua a fazer meiguice /noite luarenta a luarar /noite luarenta a luarice.”
Pedro Miguel Salvado - Investigador da Universidade de Salamanca
[A propósito da exposição com o título HUMOS DE MORILLE (Salamanca, SP) que esteve integrada no
ENCUENTRO TRANSFRONTENRIZO DE ARTE DE VANGUARDIA
ENCUENTRO Y FESTIVAL DE POESIA Y DE LAS ARTES EN EL MEDIO RURAL
Morille 9, 10 y 11 de Julio 2006
a convite do Ayuntamiento de Morille esta exposição esteve patente até 31 de Setembro 2010.]
Em exposição temporária no Bar Passadiço, na aldeia de xisto Janeiro de Cima (Fundão).