E o Carlos
Eduardo não é homem de desperdícios. Mãos à obra e carrega a alquitarra, de
manhã cedo, mesmo no Domingo.
Nesse dia
acordei cedo, também, mas voltei a deitar-me para repousar o corpo da frega do
dia anterior, na limpeza e desinfecção das alças e quadros das colmeias, que
ficaram da cresta.
Ao café da
manhã, e era já meio-dia, o Carlos e o Fernando convidaram-me a provar a
alambicada. Acedi, embora contragosto porque este primeiro café precisa de
tempo para me preparar para o resto do dia. Quem me lê ou conhece pessoalmente
sabe o valor que dou a estes momentos, nesta ou noutra esplanada, mesmo com
sol, mesmo com chuva.
Nesse dia
parou ali à minha frente, para atestar de combustível, o carro que transportava a equipa que se reuniu para a volta a Portugal em 80 dias. Eu
sabia que andavam por aqui porque acontecia o I Festival Literário da Gardunha
e iriam fazer parte. Estive quase para ir assistir mas, como não fui
formalmente convidado, optei por ficar por aqui, noutros ensaios...
Toda a
equipa percebeu do que falávamos e, numa notória e profissional atitude
jornalística, esboçaram a pergunta se poderiam ir testemunhar esse prodígio de
transformar os podres em líquido, cristalino como a água mas muito mais
alcoólico.
Aconteceu.
Fomos todos. E eles filmaram, falaram provaram e... Perderam a melhor a melhor
parte:
a Teresa, do Carlos Eduardo, tinha preparado na véspera uma chanfana
para o almoço dessa alambicada. E que boa que estava o raio da cabra.
Deu para os
anfitriões, para mim e para o Fernando Alentejano, para o Fernando Serra e para
a Gracinda e até para o meu filho António Lopes (Tózito) que não tinha nada a
ver com o assunto. Mas nesta como na maioria das terras do país há sempre lugar
para mais um, dando alma à expressão que "numa casa portuguesa cabe sempre
mais um à mesa"!
E, nestes
encontros, saudáveis também pelas amizades, até o vinho é bom:
- Bota aí
mais um, caramba, que hoje o dia está feito!
E estava.
Até porque era Domingo. Dois ou três bagaços depois, para a prova, para ajudar
a digerir e amaciar, ainda mais, a carne da cabra que já estava na barriga
fomos todos tomar café ao "bar das bombas".
Como o tema
do dia estava sobre a mesa ensaei a primeira atitude de compromisso para um
assunto em que estava pouco à vontade:
- Rapaziada,
este ano vou fazer vinho. O meu sogro, José S. Martinho, já não tem idade para
estas andanças, o seu braço direito (e esquerdo) - a sua empregada Celeste,
acabou de ter a segunda filha...
A minha
curiosidade pelo processo de transformação das uvas em mosto ia alicerçando em
mim a convicção de que arranjaria coragem para meter mãos às uvas, fazer o que
nunca tinha feito e, muito pior que isso, num dia destes teria que dar a provar
à comunidade o líquido já composto e expor-me ao julgamento popular a que eu
próprio me candidatava. Acrescia que com a atitude iria retirar ao meu sogro
uma das suas habilidades, onde eu nunca tinha provado nada, apesar de este ano
já ter assumido a responsabilidade da cresta. E que mel!
Mãos à obra.
Estava decidido. A partir de Quarta-feira davam bom tempo e o Luís Nunes, da
Celeste, prontificou-se de imediato a dar uma ajuda. Abençoado homem que em
dois dias de vindima nunca se negou e, até, incentivava o esforço:
- Vai ver
que o vinho, apesar deste ano não ter corrido bem para as uvas, grande parte
está podre, acabará por se beber!
Percebi de
imediato que, se o vinho não for bom, está ali a desculpa.
E também me
irão perdoar por ter sido a minha primeira vez... animei-me.
Esmagadas as
uvas na dorna, dariam, a olho, trezentos e cinquenta litros de tinto. O
suficiente para encher a cuba de aço. Nem era preciso mais: era a medida exacta
da cuba e, a beber um litro por dia, descontando os quinze que vou para fora, era
perfeito, matematicamente perfeito. Oxalá o vinho também o seja!
Mas ficou o
mosto na dorna. Era preciso retirá-lo...
- Não pá,
não me vou meter nessa! Tenho lá costas para isso? - ia pensando para comigo na
perspectiva da etapa que se começava a esboçar.
Mas, às
tardes, no bar das bombas onde nos encontramos todos os dias para, também, um
jogo de sueca, o Fernando Serra perguntava-me ou incitava-me:
- E a
aguardente Belarmino? Vai fazer a aguardente - dizia num tom jocoso.
E, tantas
vezes o cântaro vai à fonte... Estava decidido, iria fazer aguardente!
- Que
jeitoso - pensei em voz muda, ir meter-me noutra ainda de maior
responsabilidade, também pela primeira vez.
Aparecido o
alambique cresceu também o entusiasmo à volta dos carismáticos.
O Alentejano
arregaçou as mangas, ajudou-me a montar o esquema professando os seus
conhecimentos. Tínhamos acabado de meter a balsa na caldeira, colocado a
cabeça, colocado o pescoço de cisne no sistema de refrigeração, já cheinho a
transbordar de água fria, quando irrompem pelo anfiteatro mais três
engenheiros.
O Serra,
calado como um rato, ia inspeccionando o local na procura de algo que
certamente me escaparia. Olhos de lince, esperto, encontrou um pacote de
farinha de trigo que sabia que o meu sogro teria ali, resto de outras andanças.
Amassou-a com água para fazer uma espécie de betume com que besuntou as juntas
da cabeça e do pescoço do engenho e, com aquele risinho número dois, de plena
satisfação, foi ensinando na sua eminente sapiência:
- É preciso
tapar estes buraquinhos todos se não o vapor sai todo por ali! Então tu não
vês?
Estava na
hora de literalmente "dar fogo à peça".
Apesar de
alguma nostalgia pela forma no processo milenar, o uso da lenha aqui não era
possível. Recorri a uma trempe, garrafa de gás cheia para garantir não haver
falhas durante a alquimia e pronto, acendi o lume.
- Dá-lhe
mais gás, dizia o Açoreano na ânsia de ver o líquido correr pela palhita verde
que o Alentejano, com mestria, dobrou ligeiramente e colocou no final do tubo
de descarga.
O Carlos,
sempre mais recatado, ia-me segredando que o lume forte, nesta fase, faria
agarrar a balsa ao fundo da caldeira. Além de ser difícil de tirar, na
preparação da segunda queima. E daria mau gosto ao bagaço
Mas que
havia eu de fazer na presença de tantas sumidades?
- Agora
demora para aí uma hora, até que todo o engenho aqueça o insuficiente para
começar a correr pelo bico. Dá tempo para fazermos dez riscos, avançava o
Alentejano.
Foi a deixa
que precisava ouvir para os tirar dali:
- Embora lá
beber uma mini!
E lá fomos
para o bar das bombas. A meio caminho avisei que me tinha esquecido de algo:
- Ide
andando, pedi lá as cartas que eu vou já.
Num repente
fui-me ao fogão e reduzi o fogo. Pensei que o Carlos teria razão!
Bebidas três
ou quatro minis pedi ao Luís que me segurasse as cartas, por um momento. Estava
preocupado com a safra e queria medir todo o processo. Quando voltei exibia na
mão, orgulhosamente, o primeiro líquido do fruto e do esforço.
- Ainda vem quente, provai lá!
Esta
aferição dar-me-ia a garantia se valia a pena continuar.
Levantaram-se
todos e corremos para o laboratório, pela necessidade de descobrirem, por eles
mesmo, que eu tinha sido capaz.
E fomos provando,
dando e ouvindo palpites e eu cada vez mais extasiado.
E a
"água ardente" ardia mesmo quando o Alentejano lhe deitou fogo.
O Açoreano
deitou uma porção na mão, esfregou com a outra, cheirou e ditou que assim é que
se vê se ela é boa.
O Serra pegou
no copo da prova, bloqueou-lhe a boca com a mão, deu com ele uma pancada seca
na perna, levantou-o e ditou:
- Está boa!
Minúsculas
bolhas de ar aninhavam-se na borda do receptáculo...
- Treze,
catorze... - contava!
Ainda bem.
Não o sendo... às vezes sou supersticioso, como toda a gente.
Por essa
razão não abdiquei, nas alambicadas seguintes, do pesa aguardente.
Para
perceber a mecânica alquímica e poder controlar a graduação a meu gosto,
mantendo um padrão uniforme.
Cinco
queimadas depois, trinta litros envasilhados da selecção entre sessenta e
setenta graus, aproveitei a chanfraneira até descer aos quarenta e cinco - será boa para
as desinfecções e era agora necessário limpar o engenho e o
espaço.
Cansado, de
verdade, mas tinha de ser. Na rua chovia que deus a mandava mas só podia ser lá
fora, doesse o que doesse. E doeu.
Debaixo
daquele dilúvio, de esfregão na mão deixei o cobre com o aspecto de uma peça de
decoração. Sempre a correr para me resguardar, arrumei o melhor que pude dentro
do armazém todo o material, desliguei a iluminação e fechei a porta.
Tinha
acabado por ali, nesse dia.
Na pressa de fugir à chuva impiedosa e fechar este capítulo, depois de
um banho revigorante e vestido de roupa quente a cheirar a lavado, bem
agasalhado porque começou a arrefecer, fui ter com a malta "às
bombas" onde ainda se acusavam algumas más jogadas, ou as possíveis em
jeito de desculpa, do jogo da sueca.
Mas a
aguardente, disso, não tinha culpa, claro!
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