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A fotografia expressa sentimentos e partilhar esses sentimentos faz da arte uma aventura emocionante.

Gosto da mistura de cores, dos espaços verdes e amplos, gosto das montanhas e de respirar a sua tranquilidade…


outubro 14, 2014

Água ardente...

Feito o vinho há que aproveitar o mosto.


E o Carlos Eduardo não é homem de desperdícios. Mãos à obra e carrega a alquitarra, de manhã cedo, mesmo no Domingo.

Nesse dia acordei cedo, também, mas voltei a deitar-me para repousar o corpo da frega do dia anterior, na limpeza e desinfecção das alças e quadros das colmeias, que ficaram da cresta.

Ao café da manhã, e era já meio-dia, o Carlos e o Fernando convidaram-me a provar a alambicada. Acedi, embora contragosto porque este primeiro café precisa de tempo para me preparar para o resto do dia. Quem me lê ou conhece pessoalmente sabe o valor que dou a estes momentos, nesta ou noutra esplanada, mesmo com sol, mesmo com chuva.

Nesse dia parou ali à minha frente, para atestar de combustível, o carro que transportava  a equipa que se reuniu para a volta a Portugal em 80 dias. Eu sabia que andavam por aqui porque acontecia o I Festival Literário da Gardunha e iriam fazer parte. Estive quase para ir assistir mas, como não fui formalmente convidado, optei por ficar por aqui, noutros ensaios...
Toda a equipa percebeu do que falávamos e, numa notória e profissional atitude jornalística, esboçaram a pergunta se poderiam ir testemunhar esse prodígio de transformar os podres em líquido, cristalino como a água mas muito mais alcoólico.
Aconteceu. Fomos todos. E eles filmaram, falaram provaram e... Perderam a melhor a melhor parte:


a Teresa, do Carlos Eduardo, tinha preparado na véspera uma chanfana para o almoço dessa alambicada. E que boa que estava o raio da cabra. 

Deu para os anfitriões, para mim e para o Fernando Alentejano, para o Fernando Serra e para a Gracinda e até para o meu filho António Lopes (Tózito) que não tinha nada a ver com o assunto. Mas nesta como na maioria das terras do país há sempre lugar para mais um, dando alma à expressão que "numa casa portuguesa cabe sempre mais um à mesa"!

E, nestes encontros, saudáveis também pelas amizades, até o vinho é bom:


- Bota aí mais um, caramba, que hoje o dia está feito!


E estava. Até porque era Domingo. Dois ou três bagaços depois, para a prova, para ajudar a digerir e amaciar, ainda mais, a carne da cabra que já estava na barriga fomos todos tomar café ao "bar das bombas".

Como o tema do dia estava sobre a mesa ensaei a primeira atitude de compromisso para um assunto em que estava pouco à vontade:


- Rapaziada, este ano vou fazer vinho. O meu sogro, José S. Martinho, já não tem idade para estas andanças, o seu braço direito (e esquerdo) - a sua empregada Celeste, acabou de ter a segunda filha...


A minha curiosidade pelo processo de transformação das uvas em mosto ia alicerçando em mim a convicção de que arranjaria coragem para meter mãos às uvas, fazer o que nunca tinha feito e, muito pior que isso, num dia destes teria que dar a provar à comunidade o líquido já composto e expor-me ao julgamento popular a que eu próprio me candidatava. Acrescia que com a atitude iria retirar ao meu sogro uma das suas habilidades, onde eu nunca tinha provado nada, apesar de este ano já ter assumido a responsabilidade da cresta. E que mel!

Mãos à obra. Estava decidido. A partir de Quarta-feira davam bom tempo e o Luís Nunes, da Celeste, prontificou-se de imediato a dar uma ajuda. Abençoado homem que em dois dias de vindima nunca se negou e, até, incentivava o esforço:


- Vai ver que o vinho, apesar deste ano não ter corrido bem para as uvas, grande parte está podre, acabará por se beber!

Percebi de imediato que, se o vinho não for bom, está ali a desculpa.
E também me irão perdoar por ter sido a minha primeira vez... animei-me.

Esmagadas as uvas na dorna, dariam, a olho, trezentos e cinquenta litros de tinto. O suficiente para encher a cuba de aço. Nem era preciso mais: era a medida exacta da cuba e, a beber um litro por dia, descontando os quinze que vou para fora, era perfeito, matematicamente perfeito. Oxalá o vinho também o seja!


 Mas ficou o mosto na dorna. Era preciso retirá-lo...


- Não pá, não me vou meter nessa! Tenho lá costas para isso? - ia pensando para comigo na perspectiva da etapa que se começava a esboçar.

Mas, às tardes, no bar das bombas onde nos encontramos todos os dias para, também, um jogo de sueca, o Fernando Serra perguntava-me ou incitava-me:


- E a aguardente Belarmino? Vai fazer a aguardente - dizia num tom jocoso.


E, tantas vezes o cântaro vai à fonte... Estava decidido, iria fazer aguardente!


- Que jeitoso - pensei em voz muda, ir meter-me noutra ainda de maior responsabilidade, também pela primeira vez.


 Aparecido o alambique cresceu também o entusiasmo à volta dos carismáticos.
O Alentejano arregaçou as mangas, ajudou-me a montar o esquema professando os seus conhecimentos. Tínhamos acabado de meter a balsa na caldeira, colocado a cabeça, colocado o pescoço de cisne no sistema de refrigeração, já cheinho a transbordar de água fria, quando irrompem pelo anfiteatro mais três engenheiros.




O Serra, calado como um rato, ia inspeccionando o local na procura de algo que certamente me escaparia. Olhos de lince, esperto, encontrou um pacote de farinha de trigo que sabia que o meu sogro teria ali, resto de outras andanças. Amassou-a com água para fazer uma espécie de betume com que besuntou as juntas da cabeça e do pescoço do engenho e, com aquele risinho número dois, de plena satisfação, foi ensinando na sua eminente sapiência:


 - É preciso tapar estes buraquinhos todos se não o vapor sai todo por ali! Então tu não vês?

Estava na hora de literalmente "dar fogo à peça".
Apesar de alguma nostalgia pela forma no processo milenar, o uso da lenha aqui não era possível. Recorri a uma trempe, garrafa de gás cheia para garantir não haver falhas durante a alquimia e pronto, acendi o lume.


- Dá-lhe mais gás, dizia o Açoreano na ânsia de ver o líquido correr pela palhita verde que o Alentejano, com mestria, dobrou ligeiramente e colocou no final do tubo de descarga.




O Carlos, sempre mais recatado, ia-me segredando que o lume forte, nesta fase, faria agarrar a balsa ao fundo da caldeira. Além de ser difícil de tirar, na preparação da segunda queima. E daria mau gosto ao bagaço
Mas que havia eu de fazer na presença de tantas sumidades?

- Agora demora para aí uma hora, até que todo o engenho aqueça o insuficiente para começar a correr pelo bico. Dá tempo para fazermos dez riscos, avançava o Alentejano.
Foi a deixa que precisava ouvir para os tirar dali:


- Embora lá beber uma mini!


E lá fomos para o bar das bombas. A meio caminho avisei que me tinha esquecido de algo:


- Ide andando, pedi lá as cartas que eu vou já.


Num repente fui-me ao fogão e reduzi o fogo. Pensei que o Carlos teria razão!

Bebidas três ou quatro minis pedi ao Luís que me segurasse as cartas, por um momento. Estava preocupado com a safra e queria medir todo o processo. Quando voltei exibia na mão, orgulhosamente, o primeiro líquido do fruto e do esforço. 


 - Ainda vem quente, provai lá!

Esta aferição dar-me-ia a garantia se valia a pena continuar.
Levantaram-se todos e corremos para o laboratório, pela necessidade de descobrirem, por eles mesmo, que eu tinha sido capaz.
E fomos provando, dando e ouvindo palpites e eu cada vez mais extasiado.

E a "água ardente" ardia mesmo quando o Alentejano lhe deitou fogo.
O Açoreano deitou uma porção na mão, esfregou com a outra, cheirou e ditou que assim é que se vê se ela é boa.
O Serra pegou no copo da prova, bloqueou-lhe a boca com a mão, deu com ele uma pancada seca na perna, levantou-o e ditou:


- Está boa!


 Minúsculas bolhas de ar aninhavam-se na borda do receptáculo...


- Treze, catorze... - contava!

Ainda bem. Não o sendo... às vezes sou supersticioso, como toda a gente.
Por essa razão não abdiquei, nas alambicadas seguintes, do pesa aguardente.
Para perceber a mecânica alquímica e poder controlar a graduação a meu gosto, mantendo um padrão uniforme.

Cinco queimadas depois, trinta litros envasilhados da selecção entre sessenta e setenta graus, aproveitei a chanfraneira até descer aos quarenta e cinco - será boa para as desinfecções e era agora necessário limpar o engenho e o espaço.
Cansado, de verdade, mas tinha de ser. Na rua chovia que deus a mandava mas só podia ser lá fora, doesse o que doesse. E doeu.
Debaixo daquele dilúvio, de esfregão na mão deixei o cobre com o aspecto de uma peça de decoração. Sempre a correr para me resguardar, arrumei o melhor que pude dentro do armazém todo o material, desliguei a iluminação e fechei a porta.
Tinha acabado por ali, nesse dia.

Na pressa de fugir à chuva impiedosa e fechar este capítulo, depois de um banho revigorante e vestido de roupa quente a cheirar a lavado, bem agasalhado porque começou a arrefecer, fui ter com a malta "às bombas" onde ainda se acusavam algumas más jogadas, ou as possíveis em jeito de desculpa, do jogo da sueca.

Mas a aguardente, disso, não tinha culpa, claro!



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