Acerca...


A fotografia expressa sentimentos e partilhar esses sentimentos faz da arte uma aventura emocionante.

Gosto da mistura de cores, dos espaços verdes e amplos, gosto das montanhas e de respirar a sua tranquilidade…


outubro 28, 2014

Crónicas sem fim...

Dois pares de óculos....



Uma pequena garota, em traje de romaria ou domingueiro e lenço colorido na cabeça, aproxima-se e pretende vender-me uma senha, para um sorteio de escola que viria financiar uma viagem de estudo, como aquelas que eu fiz, no meu tempo de primária. Como foi doce a lembrança do cheiro da sala de aula, do cheiro a lápis viarco, do cheiro das folhas e flores que se secavam no meio das páginas dos livros e lhes adicionava um cheiro agridoce complementando o sabor da leitura e prometendo facilitar a sua apreensão.
Levanto os olhos para olhar ao longe, sem óculos, e nessa imensidão difusa sonho nas lembranças desse tempo, do almoço na escola, todos os dias igual ao anterior, composto por uma colher de sopa de óleo de rícino, na altura mais conhecido por óleo de fígado de bacalhau, da sopa de feijão a ferver, para cozinhar bem aqueles seres minúsculos que teimavam em boiar no caldo apesar da tentativa de os salvar com a colher e terminava com uma fatia em triângulo agudo de queijo flamengo, ou duas conforme a cara da "servente". Eram breves estes almoços porque, lá fora, era hora de recreio e tínhamos de correr bastante que o tempo passava depressa e, se era Verão, mesmo assim, dava para um mergulho no Poço do Barro. Na hora da saída arrumava desordenadamente os materiais na sacola de sarja azul que a minha mãe tinha feito, alça cruzada pelo ombro e corria até à Senhora da Conceição, o bairro onde me conheci menino até mudar para o número catorze do largo do chafariz das Oito Bicas, ou Largo José Navarro, nome da figura que mais tarde, já homem, iria ler para melhor entender a serra da Gardunha.

outubro 19, 2014

Ruralidades...

Janela discreta...


Desta janela
enxerguei o mundo!
Vi sonhos
para lá da alma,
para lá do próprio sonho.
Nesta janela
imaginei o mundo!
Para lá das estrelas,
para lá do entendimento
do efêmero.
Desta janela
vivi os dias!
Percebi a cor crepuscular,
do verde do milho
a crescer comigo.
Nesta janela
sonhei amores!
Ouvi uma voz falar comigo,
prometer tocar-me,
e tirar-me da solidão.
Desta janela
vi os meus filhos crescer!
Correrem por entre os dias,
num ciclo pré-definido
e percebi que eu era parte dele.
-


© Belarmino Lopes

outubro 14, 2014

Água ardente...

Feito o vinho há que aproveitar o mosto.


E o Carlos Eduardo não é homem de desperdícios. Mãos à obra e carrega a alquitarra, de manhã cedo, mesmo no Domingo.

Nesse dia acordei cedo, também, mas voltei a deitar-me para repousar o corpo da frega do dia anterior, na limpeza e desinfecção das alças e quadros das colmeias, que ficaram da cresta.

Ao café da manhã, e era já meio-dia, o Carlos e o Fernando convidaram-me a provar a alambicada. Acedi, embora contragosto porque este primeiro café precisa de tempo para me preparar para o resto do dia. Quem me lê ou conhece pessoalmente sabe o valor que dou a estes momentos, nesta ou noutra esplanada, mesmo com sol, mesmo com chuva.

Nesse dia parou ali à minha frente, para atestar de combustível, o carro que transportava  a equipa que se reuniu para a volta a Portugal em 80 dias. Eu sabia que andavam por aqui porque acontecia o I Festival Literário da Gardunha e iriam fazer parte. Estive quase para ir assistir mas, como não fui formalmente convidado, optei por ficar por aqui, noutros ensaios...
Toda a equipa percebeu do que falávamos e, numa notória e profissional atitude jornalística, esboçaram a pergunta se poderiam ir testemunhar esse prodígio de transformar os podres em líquido, cristalino como a água mas muito mais alcoólico.
Aconteceu. Fomos todos. E eles filmaram, falaram provaram e... Perderam a melhor a melhor parte:


a Teresa, do Carlos Eduardo, tinha preparado na véspera uma chanfana para o almoço dessa alambicada. E que boa que estava o raio da cabra. 

Deu para os anfitriões, para mim e para o Fernando Alentejano, para o Fernando Serra e para a Gracinda e até para o meu filho António Lopes (Tózito) que não tinha nada a ver com o assunto. Mas nesta como na maioria das terras do país há sempre lugar para mais um, dando alma à expressão que "numa casa portuguesa cabe sempre mais um à mesa"!

E, nestes encontros, saudáveis também pelas amizades, até o vinho é bom:


- Bota aí mais um, caramba, que hoje o dia está feito!


E estava. Até porque era Domingo. Dois ou três bagaços depois, para a prova, para ajudar a digerir e amaciar, ainda mais, a carne da cabra que já estava na barriga fomos todos tomar café ao "bar das bombas".

Como o tema do dia estava sobre a mesa ensaei a primeira atitude de compromisso para um assunto em que estava pouco à vontade:


- Rapaziada, este ano vou fazer vinho. O meu sogro, José S. Martinho, já não tem idade para estas andanças, o seu braço direito (e esquerdo) - a sua empregada Celeste, acabou de ter a segunda filha...


A minha curiosidade pelo processo de transformação das uvas em mosto ia alicerçando em mim a convicção de que arranjaria coragem para meter mãos às uvas, fazer o que nunca tinha feito e, muito pior que isso, num dia destes teria que dar a provar à comunidade o líquido já composto e expor-me ao julgamento popular a que eu próprio me candidatava. Acrescia que com a atitude iria retirar ao meu sogro uma das suas habilidades, onde eu nunca tinha provado nada, apesar de este ano já ter assumido a responsabilidade da cresta. E que mel!

Mãos à obra. Estava decidido. A partir de Quarta-feira davam bom tempo e o Luís Nunes, da Celeste, prontificou-se de imediato a dar uma ajuda. Abençoado homem que em dois dias de vindima nunca se negou e, até, incentivava o esforço:


- Vai ver que o vinho, apesar deste ano não ter corrido bem para as uvas, grande parte está podre, acabará por se beber!

Percebi de imediato que, se o vinho não for bom, está ali a desculpa.
E também me irão perdoar por ter sido a minha primeira vez... animei-me.

Esmagadas as uvas na dorna, dariam, a olho, trezentos e cinquenta litros de tinto. O suficiente para encher a cuba de aço. Nem era preciso mais: era a medida exacta da cuba e, a beber um litro por dia, descontando os quinze que vou para fora, era perfeito, matematicamente perfeito. Oxalá o vinho também o seja!


 Mas ficou o mosto na dorna. Era preciso retirá-lo...


- Não pá, não me vou meter nessa! Tenho lá costas para isso? - ia pensando para comigo na perspectiva da etapa que se começava a esboçar.

Mas, às tardes, no bar das bombas onde nos encontramos todos os dias para, também, um jogo de sueca, o Fernando Serra perguntava-me ou incitava-me:


- E a aguardente Belarmino? Vai fazer a aguardente - dizia num tom jocoso.


E, tantas vezes o cântaro vai à fonte... Estava decidido, iria fazer aguardente!


- Que jeitoso - pensei em voz muda, ir meter-me noutra ainda de maior responsabilidade, também pela primeira vez.


 Aparecido o alambique cresceu também o entusiasmo à volta dos carismáticos.
O Alentejano arregaçou as mangas, ajudou-me a montar o esquema professando os seus conhecimentos. Tínhamos acabado de meter a balsa na caldeira, colocado a cabeça, colocado o pescoço de cisne no sistema de refrigeração, já cheinho a transbordar de água fria, quando irrompem pelo anfiteatro mais três engenheiros.




O Serra, calado como um rato, ia inspeccionando o local na procura de algo que certamente me escaparia. Olhos de lince, esperto, encontrou um pacote de farinha de trigo que sabia que o meu sogro teria ali, resto de outras andanças. Amassou-a com água para fazer uma espécie de betume com que besuntou as juntas da cabeça e do pescoço do engenho e, com aquele risinho número dois, de plena satisfação, foi ensinando na sua eminente sapiência:


 - É preciso tapar estes buraquinhos todos se não o vapor sai todo por ali! Então tu não vês?

Estava na hora de literalmente "dar fogo à peça".
Apesar de alguma nostalgia pela forma no processo milenar, o uso da lenha aqui não era possível. Recorri a uma trempe, garrafa de gás cheia para garantir não haver falhas durante a alquimia e pronto, acendi o lume.


- Dá-lhe mais gás, dizia o Açoreano na ânsia de ver o líquido correr pela palhita verde que o Alentejano, com mestria, dobrou ligeiramente e colocou no final do tubo de descarga.




O Carlos, sempre mais recatado, ia-me segredando que o lume forte, nesta fase, faria agarrar a balsa ao fundo da caldeira. Além de ser difícil de tirar, na preparação da segunda queima. E daria mau gosto ao bagaço
Mas que havia eu de fazer na presença de tantas sumidades?

- Agora demora para aí uma hora, até que todo o engenho aqueça o insuficiente para começar a correr pelo bico. Dá tempo para fazermos dez riscos, avançava o Alentejano.
Foi a deixa que precisava ouvir para os tirar dali:


- Embora lá beber uma mini!


E lá fomos para o bar das bombas. A meio caminho avisei que me tinha esquecido de algo:


- Ide andando, pedi lá as cartas que eu vou já.


Num repente fui-me ao fogão e reduzi o fogo. Pensei que o Carlos teria razão!

Bebidas três ou quatro minis pedi ao Luís que me segurasse as cartas, por um momento. Estava preocupado com a safra e queria medir todo o processo. Quando voltei exibia na mão, orgulhosamente, o primeiro líquido do fruto e do esforço. 


 - Ainda vem quente, provai lá!

Esta aferição dar-me-ia a garantia se valia a pena continuar.
Levantaram-se todos e corremos para o laboratório, pela necessidade de descobrirem, por eles mesmo, que eu tinha sido capaz.
E fomos provando, dando e ouvindo palpites e eu cada vez mais extasiado.

E a "água ardente" ardia mesmo quando o Alentejano lhe deitou fogo.
O Açoreano deitou uma porção na mão, esfregou com a outra, cheirou e ditou que assim é que se vê se ela é boa.
O Serra pegou no copo da prova, bloqueou-lhe a boca com a mão, deu com ele uma pancada seca na perna, levantou-o e ditou:


- Está boa!


 Minúsculas bolhas de ar aninhavam-se na borda do receptáculo...


- Treze, catorze... - contava!

Ainda bem. Não o sendo... às vezes sou supersticioso, como toda a gente.
Por essa razão não abdiquei, nas alambicadas seguintes, do pesa aguardente.
Para perceber a mecânica alquímica e poder controlar a graduação a meu gosto, mantendo um padrão uniforme.

Cinco queimadas depois, trinta litros envasilhados da selecção entre sessenta e setenta graus, aproveitei a chanfraneira até descer aos quarenta e cinco - será boa para as desinfecções e era agora necessário limpar o engenho e o espaço.
Cansado, de verdade, mas tinha de ser. Na rua chovia que deus a mandava mas só podia ser lá fora, doesse o que doesse. E doeu.
Debaixo daquele dilúvio, de esfregão na mão deixei o cobre com o aspecto de uma peça de decoração. Sempre a correr para me resguardar, arrumei o melhor que pude dentro do armazém todo o material, desliguei a iluminação e fechei a porta.
Tinha acabado por ali, nesse dia.

Na pressa de fugir à chuva impiedosa e fechar este capítulo, depois de um banho revigorante e vestido de roupa quente a cheirar a lavado, bem agasalhado porque começou a arrefecer, fui ter com a malta "às bombas" onde ainda se acusavam algumas más jogadas, ou as possíveis em jeito de desculpa, do jogo da sueca.

Mas a aguardente, disso, não tinha culpa, claro!



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outubro 07, 2014

Viagens na minha terra...

Ladeira, Fundão - Beira Baixa, Portugal


Ladeira...
No Outono
quando as folhas douradas
das videiras caírem,
dobradas pelo vento de Norte,
pelas primeiras chuvas,
ou durante o Inverno,
que aqui é frio,
embalada pelo lamento
da água do ribeiro,
quando repassa o velho moinho,
vinda do Zibreiro,
dormirá calma,
até que a Primavera
a acorde do seu sono
e a beije com paixão,
verde, cheia de aromas,
e lhe prometa o Verão.
Na encosta da montanha,
aninhada como num presépio,
guardiã do vale
até para lá do Maxial,
até para lá do Zêzere,
mirante de um panorama vibrante,
definidor da sua alma livre,
continuará
como uma donzela bonita
por entre os pinheiros,
pegando as estrelas,
com ajuda da brisa branda.

Que sonho lindo...

© Belarmino Lopes


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outubro 06, 2014

Dois pares de óculos...

Crónica sem fim...



Tenho dois pares de óculos: um para ver ao longe, quando me apetece, e outro para ver ao perto, porque necessito. Iguais aos que se vendem nas farmácias só que mais baratos, genéricos portanto. Dou por mim, vezes amiúde, a tirar os de ver ao longe para gozar aquele ambiente difuso que me deixa espaço na concentração para apreciar detalhes. Curioso: que deveria por os de ver ao perto, porque são detalhes, dirão! mas não são esses os pormenores a que me refiro, são os que apenas a alma vê, sôfrega de conhecimento, utilizando esta artimanha para recrutar aquela parte do cérebro quase desprezada pela pressa das vidas e oca daquilo que nos rodeia.

Sentado na minha cadeira da esplanada, como em casa, quase sempre na mesma porque sou um animal de velhos hábitos e porque detesto sentar-me numa base quente, pouso o segundo par em cima da mesa que me cabe, os dever ao perto, e regalo os olhos por aquela espécie de janela para o resto do mundo, através dos dois óculos de ver ao longe. Quando, anestesiado já pela rotina fastidiosa, quando as passadas das pessoas ou os rituais humanos já me toldam e fazem lacrimejar, mudo de par.
Uma nova atitude renasce até que, ela também, se torne um acto rotineiro. Seguramente não distingo a mais de cem metros e essa bolha que me rodeia permite distanciar-me, temporariamente, para aquele mundo imaginário onde as cores também são tons e os sons são da brisa que lhes limpa aquele ar embaciado que nos confunde e parece camuflar as formas.
(...)

outubro 04, 2014

Luz branda...

Rio Ocresa - Barragem de st.ª Águeda ou Marateca



A luz branda
Com ela é muito difícil ser criativo.
Pela escolha do cenário,
ou do objecto principal,
tendo como ferramenta…
a minha humilde experiência!
Antever o "pós-natural",
que resulta de mais que uma advertência:
da abertura específica,
de um período de exposição,
da humana observância,
fundamental,
para a possível captura.
Do desofuscar do véu,
que vai para além da visão.
Pelo conjunto.
Quanto mais difícil o assunto,
maior vigor na imaginação…
Exigente de grande esforço
e de um desespero feroz pela lealdade,
também,
essa luz velada,
prefere o genuíno conhecimento…
para além de uma companhia de caminhada,
para além de uma amizade de momento.

Profundidade de campo
necessária quanto mais difícil o assunto.
Ainda que com essa luz branda,
tal atrevimento seja louvável.
Simultaneamente,
entre o premir do botão
e a realidade virtual,
obriga a sentir-me voluntário,
e a pensar com o coração,
para tornar possível o inalcançável.
Ainda que pequena a imagem.

Resultado
a maneira como a alcançamos com a visão.
Fundir os tons frescos, à mão,
em calor brando e com gentileza,
esbater a cor quente da terra,
reflectida na vegetação…
numa flor,
sabendo eu, observador,
que não é fácil conseguir um espelho
reflector irrepreensível da natureza.
Ainda que branda a luz!


©Belarmino Lopes

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